Nuno Prospero dos Santos

Mens Agitat Molem - "Mind moves Matter"

Chuva Oblíqua

Começa a época das chuvas e lembrei-me desta pérola do cubismo e interseccionismo de Fernando Pessoa.

I

ATRAVESSA esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…

Não sei quem me sonho…
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma…

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro…

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar…
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro…

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste…
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel…

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa…

III

A Grande Esfinge do Egito sonha pôr este papel dentro…
Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…

Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops…
De repente paro…
Escureceu tudo… Caio por um abismo feito de tempo…
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena…

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel…
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso…

Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!…

IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!…
As paredes estão na Andaluzia…
Há danças sensuais no brilho fixo da luz…

De repente todo o espaço pára…,
Pára, escorrega, desembrulha-se…,
E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados…

V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel…
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim…
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal…
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois…
A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol…

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar…
Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos…
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje..

VI

O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe…

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo…

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão tornando-se jockey amarelo…
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos…)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal… E a música atira com bolas
À minha infância… E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos…

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo…

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância…
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo…


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1 Comment

  1. Maria Ermelinda Sequeira Paixão August 1, 2015

    Caro Nuno:

    Sou uma mulher de 84 anos. Venho estando em cadeira de rodas. Vou ser operada. Talvez “và” ou saia dela… Como muito velha que sou, minha vida tem muitas histórias. Mas na eternidade histórias são pesos que se devem soltar porque só o momento presente é tudo. Vejo que é um poeta. Também sou. Ser poeta para mim é deixar acontecer o que não acontece se não se for. O poeta porém não é escravo. Só deixa isso acontecer se quiser. Eu desde certo tempo que estou nisso. Tipo de silêncio interior.
    Gostei do ruido das suas carruagens internas. Das palavras em catadupa. Livres como
    pássaros despreocupados. Alheios à fome, à sede ou à fartura. Senti-me irmanada à sua alma volátil abrindo-se em dádiva. E, agora, como foi que tropecei em si?

    Tenho um filho de 46 anos com cancro cerebral. Duas filhas mais velhas que agora estão bem. Duas netas e dois netos. E meu ex-marido, que vive comigo, acamado e
    ausente, noutro mundo que já não é este.
    – Meu filho está deixando de trabalhar porque, embora lúcido grande parte do tempo e conversa fluida, de repente não se lembra mais o que estava a dizer. Falo, neste caso, do lado direito do cérebro. O lado esquerdo, esse, então, pô-lo de “férias”. Não sabe mais de números; fazer qualquer conta,; o que é Julho ou Janeiro, domingo ou terça feira. E por aí… Então está encerrando o atelier – porque é designer e, se não o fecha, não vai sobrar para comer, porque os impostos vão-se banquetear com o que resta… Bem. Mesmo assim vão mesmo. Então, de parceria comigo que tenho prática de resolver problemas, está na Ilha Terceira dos Açores a viver dos rendimentos… Ele adora aquela Ilha. E que melhor actividade para uma pessoa a quem dão em média mais 4 anos de vida do que estar onde lhe agrada? Os dois concordámos com isso. Se viver mais, vive; se não, também está bem. Então que aproveite a vida para viver. Comprei-lhe com todo o dinheiro que pude o equipamento fotográfico que levou. Mais um monitor, pouco antes de partir, a caminho do aeroporto, na Color Foto, pois verificou que era mesmo preciso e eu paguei.
    Mas ao o embalarem, deixaram o cabo na loja… Contactaram-no por TM, anotaram a
    morada em Angra e, no dia seguinte, lá foi o cabo. Como eu ainda não sabia da existencia do Nuno; de supervisão de encomendas; de sites de CTT e por aí… E como
    Angra do Heroismo e toda a Ilha Terceira (pelo que o Ricardo meu filho me diz) é um lugar onde se vive com calma, sem correrias, falando com quem se aproxima como se se conhecesse desde criança… tambem lá não se dá muito da vida para que tudo vá perfeito, sem falhas… Faz-se o que se tem a fazer “na calma e pronto”. Assim, possivelmente um carteiro novo em substituição dum mais velho de férias… ao
    topar com a encomenda do “cabo viajante”; e ao procurar aquela pessoa desconhecida (que nem era o meu filho mas a pessoa em cuja casa alugou um quartinho) não procurou mais… nem deixou aviso… Deixou simplesmente no seu local de trabalho – os Correios – a indicação “pessoa desconhecida”…
    – Estranhando tanta demora comecei a indagar. Mas a encomendinha – um Expresso- não dava sinal de vida. Não estava lá. Como lhe foi dito nos correios numa das procuras. Entretanto sabe da existência doutra estação de correios. E, quando lá chega e procura, dizem-lhe que tinha sido devolvida…

    Aqui começa a minha aprendizagem com sites. Primeiro site dos CTT e, depois, com o
    o seu. Cheguei primeiro ao dos CTT. E, como logo o cabo chegado, foi pela Color Foto a meu pedido imediatamente reenviado eu, nova na experiência, mas decidida a aproveitar tal vantagem para não haver hipótese de mais outro acidente, quis seguir o trajecto da encomenda. Não me pergunte como descobri o papel do Nuno – que acho o máximo! – porque não seicomo foi. Fraca internauta como sou, dou muita atenção a tudo para não me perder e, quando dei por mim, estava no seu site… Coloquei a referência da encomenda, o meu e-mail etc. e fiquei à espera… – Então, ontem, tive uma resposta e depois outra. A segunda deixou-me eufórica! O cabo tinha chegado e sido já entregado ao Paulo Sousa, em cuja casa o meu filho está, pois eu tinha mandado colocar no endereço “Ricardo Mealha ao cuidado de Paulo Sousa”. Fiquei tão delirante que telefonei logo ao Paulo. – Paulo! que máximo! você já recebeu o cabo! Está aqui a entrega com o seu nome e tudo! – Sim, diz ele. O Ricardo saiu e eu já o coloquei em cima da cama dele. (Ele, que sabia como o meu filho estava aborrecido com a demora da primeira remessa do cabo; e o receio de que algo mais ainda viesse a acontecer, quis logo fazer-lhe uma surpresa pondo-lhe a encomenda em cima da cama, para mais impacto do que entregá-la em mão!)
    – O meu filho saíu de Lisboa no dia 15 de Julho. Precisa imenso deste cabo que anda a viajar; mas, desta vez, que assombro: Em 3 dias tinha-o em cima da cama! Após 15 dias de espera…

    Nuno: O seu trabalho abnegado para que, quem precise, possa ter as mesmas facilidades que descobriu e enriqueceu, trouxe-me grande alegria depois do desespêro vivido. Mais ainda porque queria que o meu filho não se preocupasse; e pudesse aproveitar o sacrifício feito em lhe comprar tudo o que ele precisa para fazer aquele trabalho a que se propôs. Sobre este trabalho talvez venha a falar-lhe. Mas não agora. Então aqui estou para muito lhe agradecer e louvar a sua índole benigna, neste mundo de interesses, ao pôr ao dispor de todos a sua capacidade de produzir uma coisa tão útil. E aqui me despeço como sua amiga e lhe vou mandar uma lembrançazinha por Paypall como prova de reconhecimento. Ermelinda Paixão

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